Two of Us – o sonho nunca acabou

Meu caros amigos,

peço a devida licença a todos para publicar um texto que recebi de meu pai, que esteve presente no primeiro show do Paul McCartney em São Paulo recentemente.

Para ser sincero, não gosto e as vezes nem leio este tipo de texto / e-mail. Mas este é realmente especial e, dependendo do seu estado de espírito, emocionante. Assim, merece a leitura de todos.

Recomendo a todos que não o leiam se estiverem com a cabeça a mil por hora neste momento – deixem para um momento melhor…

Aos que forem ler, boa viagem…

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Por trás dos cabelos longos e bigode, ele está olhando para baixo, observando algo fixamente. É surpreendido pela chegada do companheiro, que possui cabelos ainda mais longos que quase escondem os óculos de aro fino. O recém-chegado senta-se ao lado do amigo, olhando para baixo e apertando os olhos devido à miopia. Após alguns segundos, pergunta:
– Ele já entrou no palco?
– Já. Está tocando há alguns minutos – responde o amigo.
– Onde é?
No Brasil. Em São Paulo, acho.
– Está cheio?
– Muito.
O de óculos permanece em silêncio alguns segundos, tentando captar o som que vem de baixo, de longe.
– O que ele está tocando agora? Jet?
– Acho que sim, não dá para ouvir direito por causa da gritaria. Mas acho que é sim.
– Eu gosto desta música.
– Ele está falando com a platéia, mas não consigo entender nada.
– Acho que é português. Não dá para ouvir direito, o público não deixa.
– Com a gente era assim, também. Lembra no Japão? Ninguém ouvia nada.
– Olhe! All My Loving!
Ambos começam a bater as mãos no joelho, de forma quase inconsciente, acompanhando o ritmo da música. “I’ll pretend that I’m kissing…”, o de bigode canta baixinho.
– George! Você ainda se lembra da letra!
– Tem como esquecer? Aposto que você se lembra também.
– Eu me lembro de todas. Todas as músicas. Todos os versos.
– Ele está afinado ainda, não?
– Ele sempre cantou muito bem. Desde menino, ele sempre cantou muito.
Ficam em silêncio mais um pouco, olhando para baixo atentamente.
– Qual é agora? Drive my Car? A platéia esta fazendo barulho demais.
– Drive my Car. Essa é quase toda dele, sabia? Eu apenas ajudei em uns trechos.
– Está no Rubber Soul, né?
– Acho que sim. Sim.
– A platéia está cantando a música inteira.
– Como eles sabem a letra? Eles não eram nem nascidos quando lançamos isso.
– Não sei… Mas eles estão cantando a música inteira, John. Dá para ver daqui.
Permanecem em silêncio por mais algum tempo. O de óculos, mesmo sem perceber, balança a cabeça para os lados discretamente, ao som da música.
– Ele foi para o piano.
– Eu nunca entendi como ele sabia tocar tantos instrumentos. Isso não é normal.

That leads to your door
Will never disappear

– Qual ele está tocando agora? The Long and Winding Road?
– Sim. Veja! As pessoas estão chorando!
Afastando os cabelos do rosto, o míope aperta ainda mais os olhos, vasculhando a multidão.
– Não gosto dessa música – ele diz, mais para si mesmo que para o amigo.
– É linda. Ninguém conseguia fazer baladas como ele.
– Mas não gosto. Nós mal nos falávamos na época.
– Acontece. Acontece com todo mundo, por que não iria acontecer com a gente?
– Verdade.
– Ele está tocando as nossas, olhe. Antes foi And I Love Her. Agora é Blackbird.
– Eu não acredito que as pessoas ainda cantam junto, depois de tantos anos… A letra não está aparecendo no telão? – pergunta o de óculos, abaixando-se ainda mais e tentando ver o palco.
– Não, elas sabem mesmo. Dá para perceber daqui.
– Ele disse meu nome?
– Sim. Você sabe qual ele vai tocar. Ele escreveu para você.

I still remember how it was before,
and I’m holding back the tears no more…

– Você está legal, John?
– Eu e ele perdemos muito tempo. Hoje eu sei disso.
– Eu sei.
– Sabe, George… Se nós soubéssemos que eu teria tão pouco tempo, talvez tivéssemos nos comportado de outra maneira.
– Talvez não. Vocês sempre foram melhores amigos. Ele sabia disso. Ele faz questão de cantar essa, todo show. E ele sabe que você está vendo. Ele não canta para a platéia, ele canta para você. É a forma que ele encontra de matar a saudade um pouco.
– Será?
– Sim. Eu senti muito sua falta antes de nos reencontramos. Olhe as pessoas lá embaixo, estão soluçando. Todos sentem sua falta.
– Eu sinto muito a falta dele. Eu sinto muita saudade da gente. Especialmente do começo. Lembra da Alemanha?
– A gente ainda era menino… Tudo era o máximo, tudo era novidade. Nós éramos novidade.
– Nós ainda somos novidade. Olhe, essa é sua!

You’re asking me, my love will grow?
I don’t know, I don’t know

– Eu me lembro de quando escrevi. Era difícil escrever algo com vocês ali.
– Essa música é linda.
– Olhe! No telão! Ele colocou uma foto minha!
– A gente gostava demais de você. Você era mais novo, víamos você como uma espécie de caçula.
– Eu sei – concorda o de bigode, rindo alto.
Esperam em silêncio a plateia aplaudir. Ao final da música, ambos estão visivelmente emocionados, cada qual com suas lembranças. Os acordes de uma nova canção parecem despertá-los.
– Eu gosto dessa!
– Essa é dele, não é nossa.
– Band on the Run? Mas poderia ser nossa.
– Se dependesse de mim, seria.
– Ah, sim. De todos nós, você sempre foi o mais roqueiro, essa música é a sua cara.
– Ele fez muita coisa boa, né?
– Sim.
Enquanto o de óculos bate os dedos no joelho, o de bigode, sentado de pernas cruzadas transforma sua própria coxa no braço de uma guitarra imaginária. Ambos parecem distantes, talvez pensando não no que foi, mas no que poderia ter sido.

I read the news today oh boy
About a lucky man who made the grade

Enquanto o de bigode tamborila os dedos no ritmo, seu amigo remove os óculos rapidamente. Está chorando.
– Você sempre chora nessa.
– Foi uma das últimas que escrevemos juntos. Mesmo separados. Metade é minha, metade é dele. É estranho, hoje, vê-lo cantando minha parte, e eu aqui.
– Ele não está cantando sozinho.
– Como não?
– Olhe o estádio. É uma voz só, uma voz de sessenta mil pessoas.
– O que são aquelas coisas brancas? Balões de gás?
– Sim.
– Como isso fica bonito, vendo daqui de cima.
– Espere… Give peace a chance? Isso não era da música, certo?
– Não.
– Isso é seu!
– Sim.
– O estádio inteiro está cantando! Olhe os balões de gás! As pessoas estão chorando, se abraçando.
O de óculos resmunga um palavrão, sorrindo. Seus óculos estão embaçados, molhados de saudade.
– Let it be. Essa não poderia faltar.
– Eu não me conformo com isso, com as pessoas ainda saberem as letras inteiras.

But in this ever changing world
in which we live in

– Eu gosto dessa também.
– Uau! Você viu aquilo, John? São fogos?
– Ficou demais, né?
– Nós não tínhamos isso no nosso tempo.
– Nós não precisávamos.
– Mas ele também não precisa. Mesmo assim, ficou lindo.
– O que as pessoas estão cantando, agora? Hey Jude?
– Sim… Estão abraçados, cantando junto com ele.
– É engraçado, George… Eu sei que nós éramos bons… Mas acho que nunca entendi a importância que temos na vida das pessoas, até pouco tempo atrás. Quando eu assisto aos shows dele, e vejo as pessoas cantando junto, chorando… Mexe demais comigo.
– Nós éramos bons, John. Você sabe disso.
– Aparentemente, ainda somos. As pessoas ainda…
– Ainda o quê?
– Sabe, eu estava errado.
– Oi?
– Quando eu disse que o sonho acabou. Eu estava errado.
– Nós três sempre soubemos disso, que você estava errado. Você sempre falou demais. Lembra aquela confusão de sermos maiores que Deus?
– Sim… Mas o sonho… O sonho não acabou nunca. Eu errei.
– John?
– Sim?
– O sonho nunca vai acabar. Não enquanto as pessoas se lembrarem. E elas vão se lembrar para sempre.
Sorrindo, John Lennon levanta-se e oferece a mão a George Harrison.
– Você está com sua guitarra?
– Eu sempre estou com minha guitarra, você sabe.
– Vamos tocar um pouco?
– Qual?
– Qualquer uma. Deu saudade.

Milhões de quilômetros abaixo, Paul McCartney, emocionado, agradece à platéia.

Atualização em 30/maio/2011 – autor do texto (FanFic) deste post: Rob Gordon (obrigado pela informação).



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35 respostas

  1. Tenho a impressão de ter ouvido essa conversa, apesar deles estarem acima do céu, deu pra ouvir! =D
    E agora aqui estou eu controlando pra não chorar no meio da sala, no trabalho.

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  2. Como descrever o que li neste post – é mágico, inesquecível, não há como descrever realmente, somente pedir para voce dar os parabens ao seu pai e ler de novo, para novamente se emocionar.

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  3. A gente sempre soube que eles estavam lá em cima vendo o show com a gente, né Jaque?
    Fiquei arrepiada com esse texto! E pensar q isso foi só há uma semana atrás! Parece tão distante agora….

    Eduardo, a Jaque é a minha prima que me acompanhou nessa viagem à realidade paralela que foram os dois shows do Paul em SP.

    De onde essa surgiu esse texto?

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    • Legal… bem-vinda também ao Minuto HM, como já comentei.

      Sim, uma viagem à realidade paralela é uma ótima definição… de algo que ocorreu tão recentemente mas, ao mesmo tempo, parece que foi há anos… o de Porto Alegre para mim, então… parece que tem anos.

      Sobre a origem do texto, é desconhecida. Se descobrir, publico com certeza aqui.

      [ ] ‘ s,

      Eduardo.

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  4. Eduardo O texto além de muito emocionante ,é brilhante!!! Parabéns ao autor e ao seu pai, por deixar que você o disponibilizasse aqui no Minuto HM.

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  5. Incrível !! Acho que isso não é texto, é psicografia. Eu também tive a impressão de ter ouvido uns suspiros vindos de bem longe do gramado…
    Parabéns, vou guardar esse diálogo pro resto da vida

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  6. Nada melhor que palavras para descrever o que sentimos naquele show, um diálogo, um flashback, uma verdadeira viagem mágica.

    Única correção:

    “Milhões de quilômetros abaixo, a plateia, emocionada, agradece a Paul McCartney.”

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    • Olá Marina, seja bem-vinda ao Minuto HM. Aproveite o espaço.

      Você tem razão: nós que devemos agradecer por cada milésimo de segundo que tivemos em nossas vidas por termos conseguido presenciar, mais uma vez, Sir Paul McCartney. Fica agora a lembrança, a emoção, a alegria com mistura de choro contido, enfim, o desejo de muita saúde a ele, para que possamos, quem sabe, vê-lo novamente.

      [ ] ‘ s,

      Eduardo.

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  7. acabei de ler e estou chorando compulsivamente, como chorei enquanto assistia o show do paul.

    mandei pro meu pai beatlemaníaco, que logicamente estava comigo quando vimos esse show e ele teve a mesma reação que eu.

    como disse uma faixa que alguém levou ao show: “the dream it’s not over. thanks Paul”

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  8. Aí emocionou. Se segurando no trabalho.

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  9. Deste jeito vou ter que acessar mais o MinutoHM, apesar do texto ser do Papai Rolim ficou excelente.

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  10. Olá

    Sou o autor do texto em questão (cuja postagem original está em http://champ-chronicles.blogspot.com/2010/11/two-of-us.html e agradeço os comentários e elogios. Gostaria também que você, por favor, linkasse o endereço da postagem original.

    Obrigado!

    Abraços

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  11. Oi pessoal do Minuto HM! Eu já tinha lido esse post e sei quem é o autor, agora vocês podem creditar o texto ao querido Rob Gordon: http://champ-chronicles.blogspot.com/2010/11/two-of-us.html

    Beijinho!

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  12. Rob e Carol, primeiramente, sejam bem-vindos ao Minuto HM.

    Muito bom ter essa notícia… que bom descobrir o autor deste maravilhoso texto, recebido por e-mail e que, mesmo sem a informação de autoria, publiquei por aqui.

    Rob, parabéns de verdade por essa obra-prima da emoção. É realmente espetacular.

    Se me permitem a indicação, acabei de publicar uma resenha do show do Paul no Rio (de domingo): https://minutohm.com/2011/05/29/cobertura-minuto-hm-%e2%80%93-paul-mccartney-no-rio-show-1-%e2%80%93-parte-4-%e2%80%93-resenha/

    Obrigado novamente pelo aviso e o post foi atualizado com os devidos créditos.

    Bem-vindos novamente!

    [ ] ‘ s,

    Eduardo.

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  13. Eu chorei cara, isso me emocionou bastante. Parabéns para quem escreveu.

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