Reflexão: O Impacto da Era Digital na “Propriedade” sobre a Música

Este assunto surgiu de uma conversa entre amigos, quando pontos de vista conflitantes transformaram uma conversa casual em uma discussão mais séria do que precisaria ser. Ao final todos riram, mas houve até ânimos exaltados.

Afinal, no momento atual em que dependemos tanto de plataformas digitais, até que ponto somos realmente “donos” daquilo pelo que pagamos?

Na segunda metade dos anos 90 eu fazia o “tour” pelo centro de São Paulo pelo menos duas vezes por mês, seja depois da aula no colégio ou aos sábados quando chegava a passar várias horas na Galeria do Rock. Havia publicações como a Rock Brigade e a Roadie Crew, mas nada batia a experiência de ir às lojas como Hellion e Die Hard para ver os lançamentos e novidades – e também passar em outras como a Baratos Afins para ver algumas relíquias.

Invariavelmente eu voltava pra casa com um CD novo, cuidadosamente escolhido porque o recurso era bastante limitado – um novo álbum por mês e olhe lá! Não vou cair pro saudosismo, dizendo que era melhor ouvir o CD inteiro (e as hidden gems nele contidas) do que ficar pulando faixa nos serviços de streaming atuais e blablablá. Mas naquela época aquele CD era meu, era minha propriedade, e eu poderia ouví-lo quando quisesse.

A intenção aqui não é comentar sobre o formato – afinal, há amantes do LP, do CD e até das velhas fitas K7 – mas sim falar do acesso a obras e trabalhos. Naquele momento, qualquer um que pudesse pagar o valor indicado (lembro da média de 15 reais por um álbum nacional e 23 por um álbum importado) poderia adquirir o CD (ou LP, ou K7, ou DVD) e a obra nele contida. Se bem conservado, seria possível ouvir o álbum para sempre, sem restrições.

A atual alternativa legal para o acesso a música e filmes são os serviços de streaming. As plataformas fecham acordos com artistas, gravadoras e distribuidoras e fazem a propaganda de seus catálogos. Pelo preço da mensalidade você tem o direito de ouvir o que quiser e por quantas vezes quiser, com acesso ilimitado. Parece ser o mesmo princípio da compra do CD nos anos 90. Mas… quão completos são estes catálogos das plataformas de streaming? Eles realmente dão acesso às obras completas dos artistas aos seus assinantes? Você tem a garantia de que o que busca estará ali disponível indefinidamente?

Antes de concluir o raciocínio gostaria de dar alguns exemplos (alguns, pois há inúmeros outros):

– Em uma das minhas visitas à Galeria do Rock conheci o projeto “Hamlet”, que contava a história da obra de William Shakespeare com músicas de bandas e artistas do heavy metal nacional. Bandas que via em shows de abertura ou em festivais, e que emprestavam ali uma faixa para uma compilação muito bem produzida e de alta qualidade, com nomes como Fates Prophecy, Sagga, Symbols, Torture Squad, Hangar, entre muitos outros. Hoje é possível encontrar algumas das faixas desta compilação para streaming, mas não o álbum completo com as vinhetas e com a última música “To Be” que tem cada verso executado por uma banda diferente (incluindo participação de André Matos).

– Da mesma forma, anos depois, me deparei com o álbum triplo (dois CDs e um DVD) de “Aina: Days Of Rising Doom”, uma ópera metal criada por Sascha Paeth, Miro e Amanda Sommerville com um time de estrelas do gênero no mesmo estilo do Avantasia. Comprei, ouvi muito, de olho no detalhado encarte com fotos de cada integrante – nomes como Glenn Hughes, Michael Kiske, Tobias Sammet, André Matos, Simone Simmons, Marco Hietala, Candice Night, entre muitos outros. Esta obra surge e some das plataformas de streaming com alguma frequência, e quando desta postagem não estava disponível.

– Enquanto esteve fora do Helloween Michael Kiske gravou álbuns solo, formou outras bandas e fez dúzias de participações (algumas de forma anônima) em álbuns de outros artistas. Um de seus lançamentos no período foi o álbum “Instant Clarity” que conta com partipações de Kai Hansen e Adrian Smith. No entanto, apenas os álbuns de Kiske gravados após 2015 aparecem nas plataformas de streaming.

– Falando em participações de Kiske, ele gravou uma música com a banda brasileira Thalion em seu único álbum “Another Sun”, de 2001. A banda fez a abertura de diversos shows do Angra, Shaman e figurou em muitos festivais nacionais. O Thalion, assim como inúmeras outras bandas de heavy metal que também fizeram parte da cena nacional e que tinham seus álbuns expostos nas lojas da Galeria do Rock, não está nas plataformas de streaming.

– Você já tentou buscar “Virus”, do Iron Maiden, em seu catálogo de streaming? Assim como outras músicas em suas versões presentes na edição dupla de “Best Of The Beast”?

– Saindo da música (mas na verdade não), Michael Jackson participou de um episódio da terceira temporada de “Os Simpsons”, em 1991, de forma anônima. Ele não só emprestou sua voz a um personagem em diálogos, mas chegou a performar por duas vezes durante o episódio. A atual detentora dos direitos de “Os Simpsons” é a Disney, que tem o seriado completo em sua plataforma… exceto por este episódio. As alegações são diversas, mas o fato é que o proprietário do episódio, atualmente, não permite que ele seja visto (legalmente), mesmo que você pague a mensalidade para assistir a obra completa.

*Tomei como base minhas contas do Spotify, Deezer e Apple Music. Podemos alegar que muitos (e não todos) estes álbuns estão presentes no YouTube, mas são links que eventualmente “caem” e são novamente enviados, ou seja, não cumprem 100% da questão legal a que me refiro. Pode-se também dizer que alguns conteúdos estão disponíveis em algumas praças, algo como uma versão recente das regiões 1 a 4 dos DVDs ao início dos anos 90 (para aqueles que lembram).

Pode-se argumentar que um CD físico raro ou antigo teria seu acesso tão ou ainda mais difícil que atualmente através das plataformas digitais – o que é verdade. O fato é que com a mídia física caindo em desuso muitas coisas cairão no esquecimento. Gigantes estão fechando suas linhas de produção de mídias físicas (CD, DVD, Blu-Ray) e em breve haverá apenas o formato digital, algo que me parece inevitável. No futuro, seja por direitos autorais, divergências de contrato ou qualquer outro motivo, pode ser impossível ter acesso a uma determinada obra. Será que como se jamais tivesse existido.

A discussão que mencionei ao início tomou outros rumos, chegando aos videogames (compras em lojas virtuais de títulos de jogo online, que em alguns anos têm seus servidores desligados e, portanto, deixam de existir), mas é outro mundo e eu já me alonguei demais aqui. Deste assunto, no entanto, surgiu uma frase utilizada pelo pessoal dos games: “se comprar não é ter propriedade, então copiar não é pirataria” (algo assim, em tradução livre), o que demonstra uma inclinação à ilegalidade em nome do acesso que tornou-se impossível de outra forma.

Havendo tantos exemplos de obras da minha infância e adolescência que já não estão mais disponíveis, a mim parece preocupante o rumo que a indústria está tomando. Com a idade foi embora um pouco (na verdade, um “tanto”) da minha paciência capacidade de ouvir e conhecer coisas novas, restando-me as músicas que ouvia 20, 30 anos atrás. Talvez não no meu tempo, mas futuras gerações podem sequer saber que um dia existiram aquelas obras que eu tanto admiro. E isto para mim soa bastante assustador…



Categorias:Artistas, Helloween, Iron Maiden, Off-topic / Misc, Resenhas

6 respostas

  1. Caio, que texto excelente. Eu concordo com tudo isso ai, acho que iria acabar sobrando pra mim um pouco na tal discussão acalorada.

    Ficar refém das estrategias dos serviços de streaming é muito complicado. Não é muito dificil tentar entender que as faixas com mais acessos serão as privilegiadas. Esses exemplos que você citou são a parte mais obscura ( pelo menos para aqueles que disponibilizam os serviços de streaming), e vão invariavelmente sendo deixados de lado.

    Em paralelo a isso, os canais de YouTube que não são os ” oficiais ” , fazem um pouco esse papel, não ? Até alguns oficiais também trazem, como o canal do Iron Maiden tem , olha aí : https://www.youtube.com/watch?v=NbOSBphq3NA.

    O Instant Clarity, eu também encontro, aliás eu lembro bem deste disco quando saiu :

    https://www.youtube.com/watch?v=7AvzrXh3hLw

    A pergunta, na verdade, é : Até quando? E como você citou, eles estão presentes hoje, quem sabe por quanto tempo?

    E isso vai de encontro ao conceito de possuir ou não possuir.

    Não possuir é virar refém das estrategias de Deezer, Spotfy, You Tube Music, etc, e pra sempre.

    O mesmo raciocínio se aplica aos filmes, às séries, aos games ( aí eu acho, pois não entendo nada de games…)

    Tem um filme que eu via muito na década de 90, ainda em vhs . O nome dele é The Night We Never Met. Uma comédia romântica, despretensiosa, com ótimos atores, entres eles o Mathew Broderick ( do Ferris Bueller’s Day Off – Curtindo a vida adoidado), a Annabella Sciorra também participa. Eu nunca vi esse filme em dvd, tinha uma cópia em vhs que se perdeu. O filme não deve ter ido pra lugar algum, comercialmente.

    Cadê que eu consigo ver o filme de novo???

    Aí eu pergunto , ficaremos refém da falta de memória física também ?

    É isso que é considerado a evolução dos mercados ( musicais, filmes, etc…) ?

    Eu prefiro o final do filme o mundo depois de nós.

    Se pudesse escolher, a escolha tá ali …quem não viu esse filme, aproveita pra ver, (enquanto é possível também..)

    Saudações

    Alexandre

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    • Valeu pelo comentário, Alexandre. Pois é, alguns deles a gente encontra POR ENQUANTO, e esta é a grande dúvida. A forma de consumir música mudou muito e nós que nos adaptemos, mas não dá pra não pensar na quantidade de conteúdo que vai simplesmente sumir por conta do que foi discutido no texto. Se nós já percebemos isso com o que existia em nossa época, imagina como será daqui a algumas décadas? Algo de qualidade sendo produzido HOJE que pode não existir em breve por questões de estratégia, direitos autorais e afins. Obrigado pela indicação do filme, vou ver se encontro por aqui (sim, porque tem essa de “não disponível para sua região” também). Abraço!

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  2. Sempre que se fala em mídia física já se imagina automaticamente: “Ih, lá vem conversa de velho saudosista!”. Em alguns termos, sim, pode ser saudosismo, mas, como foi citado no ótimo texto acima, é a preocupação com a continuidade de existência de uma obra.

    Obras mais famosinhas provavelmente sempre estarão lá disponíveis, porque é o que vende, mas, se pararmos pra imaginar um cenário onde aquele álbum, jogo, ou livro mais underground, que você tanto gosta, um dia pode não existir, e, quanto mais esses itens acima depender de menos pessoas para serem preservados, a chance dele sumir é maior. Nem todos tem condição, interesse ou paciência de ter um servidor em casa pra guardar essas raridades pensando no futuro.

    Pensando nas gerações que ainda nem nasceram, dando um chute bem preguiçoso, o prognóstico para que muita coisa desapareça nos próximos 50 anos é muito triste, principalmente se levando em consideração que as gerações que surgem a cada dia são cada vez mais acomodadas com tanta facilidade de acesso, isso evita que a maioria saia procurando esses itens mais raros. A pirataria realmente não é legal, e ressalto que de nenhuma forma estou incentivando-a, mas, muita coisa já teria sumido se não estivesse espalhada em tanto blog por aí.

    Abraços.

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    • Excelente comentário, Tycher. Aproveito para dar as boas vindas ao Minuto HM! Continue participando por aqui!

      [ ] ‘ s,

      Eduardo.

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    • Fala Tycher! Valeu pelo comentário. É exatamente este o ponto, gerações futuras não terão acesso a muita coisa de qualidade que possa estar em desenvolvimento AGORA, então imagina Àquilo que nós já temos dificuldade em encontrar agora. imagino como deve se sentir o pessoal de uma geração anterior ainda, porque eu mesmo posso nem sequer ter conhecido bandas ainda mais antigas porque elas simplesmente… sumiram!

      Aqui onde moro há um programa que era semanal chamado “The Vault”, em que um “roqueiro das antigas” apresenta raridades que ele tem em seu, bem, cofre. Nem adianta tentar usar o Shazam ou algo similar, as coisas que ele mostra são em sua maioria inéditas (ao menos pra mim). O programa tem TANTO conteúdo que virou diário, tem todas as noites. O mais próximo que temos no Brasil talvez seja o quadro “Baú do Ritchie” na KissFM, com versões alternativas de músicas conhecidas. E sim, eu AINDA ouço rádio, rs.

      Quando estes caras não estiverem mais na ativa, quando esss “cofres” particulares não estiverem mais sendo veiculados pelas rádios, o que acontecerá com “aqueles” itens que só eles têm? E quantas obras mais estão em “cofres” pelo mundo, não sendo compartilhadas? Sei lá, posso estar sendo romântico demais, acho muito triste que tais perdas aconteçam.

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  3. Apenas adicionando mais “vítimas” da falta de mídias físicas => https://www.msn.com/en-us/news/technology/netflix-users-left-confused-as-two-titles-are-removed-for-good/ar-AA1EknGw

    O curioso é que Black Mirror é uma série bastante popular e o episódio especial que será removido e que jamais poderá ser visto da mesma forma novamente faz um link com outro episódio da temporada atual…

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