Discografia Rush – Parte 10 – álbum: Moving Pictures – 1981

“I can’t pretend a stranger is a long-awaited friend”  – Neil Peart, ”Limelight”

Como vimos no capítulo anterior, uma mudança no direcionamento musical fazia, ao término daquela turnê, com que o grupo finalmente conseguisse sair “do vermelho” em suas contas bancárias. Ainda que com “Hemispheres” o grupo tivesse conseguido sucesso de público e quase toda a crítica especializada, e que o álbum tivesse atingido no ano de seu lançamento ótimas vendas nos EUA, Canadá e Inglaterra, o grupo ainda sofria com os prejuízos dos custos altos da turnê até 1978.

No entanto, mesmo a fama e o sucesso têm seus prós e contras. Ao chegar em 1980, os canadenses enfim finalmente alcançaram o sucesso em todos os aspectos. No entanto, como Neil Peart quase “vomitava”, havia o desconforto estampado em letras como “Limelight” em lidar com a idolatria para alguém que apenas desejava ser simplesmente um músico (“merely player”).

O sucesso de “Permanent Waves” os fez considerar prematuramente o lançamento de um novo álbum ao vivo, porém a banda já havia começado a desenvolver novos trechos de canções e o projeto inicial sempre contemplou o lançamento de 4 álbuns inéditos intercalados por 1 álbum ao vivo. Neil Peart estava particularmente entusiasmado com aqueles novos trechos de canções que estavam sendo desenvolvidas nas passagens de som, fazendo questão de gravar aquele embrião de ideias na tour.  No fim de abril de 1980, a dúvida acabou surgindo, qual seria o melhor caminho, manter o projeto original ou antecipar o lançamento de um novo duplo ao vivo? No mês seguinte, a dúvida se dissipou. Durante sua parada na cidade de Nova York em maio daquele ano, para quatro shows, eles foram recebidos por Cliff Burnstein, um dos donos do Q Prime Artist Management, empresário que os contratou para a Mercury.   Ele era um grande fã do primeiro álbum. “Lembro que tocamos em Nova York”, diria Geddy Lee, “e ele veio ao show e estávamos falando sobre talvez fazer um álbum ao vivo. E ele meio que disse para nós, Sabe, “Permanent Waves” foi tão bom que talvez vocês devessem pensar em voltar direto para o estúdio para fazer outro disco”. Neil foi o primeiro a concordar de forma efusiva: …”The reasons for this are difficult to put on paper, being somewhat instinctive, but all of us had been feeling very positive, and our Research and Development Dept. (sound check jams) had been very spirited and interesting (As razões para isso são difíceis de colocar no papel, sendo um tanto instintivas, mas todos nós estávamos nos sentindo muito positivos, e nosso Departamento de Pesquisa e Desenvolvimento (jams de passagem de som) estava muito animado e interessante).   Geddy e Lifeson perceberam seu entusiasmo. Assim, o trio apresentou a ideia aos seus empresários, que já haviam traçado um plano de dois anos para eles, mas concordaram com a mudança e alteraram a programação inicial. Lifeson avalia em retrospectiva que essa mudança foi a segunda decisão mais importante dentro de toda a carreira da banda. Só a coloca atrás do movimento efetuado em “2112”, por que sem aquele álbum não haveria Rush, e por consequência, eles não chegariam àquele momento, em 1980. Eles estavam no ritmo de ” Permanent Waves”, meio que tinham encontrado um novo estilo para eles mesmos, trabalhando em músicas mais curtas, mas ainda construindo essas complexidades nelas. O guitarrista recorda que foi um período bem emocionante para o grupo.

“Se você pensar bem”, disse Lifeson, “Moving Pictures” é o filho fofo, doce e feliz de “Permanent Waves”. Antes de começar o álbum, no entanto, o Rush se juntou, em Toronto, no dia 28 de julho, nos estúdios Phase One, com os amigos da banda canadense de rock Max Webster para tocar em “Battle Scar”, uma faixa que estava sendo gravada para o álbum de 1980 chamado “Universal Juveniles” . Durante as sessões, seu letrista Pye Dubois sugeriu uma música que ele achava adequada para o Rush e isso foi desenvolvido em “Tom Sawyer”, a faixa de abertura de “Moving Pictures”. Geddy Lee mal teve tempo para curtir o nascimento de seu primeiro filho, Julian, no dia 22, pois a banda partiu para Stony Lake, em um retiro rural, na fazenda Ronnie Hawkins em Ontário para escrever e arranjar novo material. Alex recorda: “…There was a beautiful house with a big barn. We converted the barn into a studio, set up Neil’s drum kit, and had a space for Geddy and me. And it was a really nice place…” (Havia uma casa linda com um celeiro grande. Nós convertemos o celeiro em um estúdio, montamos a bateria do Neil e tínhamos um espaço para Geddy e eu. E era um lugar muito legal).

As sessões provaram que Neil estava certo, pois foram muito produtivas. O processo de composição também passou por mudanças que acabariam mais à frente mudar o estilo do grupo de forma drástica. Geddy começou aos poucos a usar mais o teclado do que o baixo para compor, o que possibilitava uma maior diversidade de melodias, texturas e sons. “Comecei a compor nos teclados, pois achei que seria interessante trazer mais “barulho” para as músicas – mas não foi só isso. Os teclados acabaram trazendo um senso maior de espaço para os arranjos, e isso também significou mudanças nos timbres e efeitos de Alex, assim como na percussão de Neil”, explica.

A banda começou então a gravar novo material em agosto de 1980 com Terry Brown, novamente utilizando toda a estrutura do Le Studio, onde eles realmente se sentiram à vontade. Alex estava no auge de seu “período de aeromodelismo” naquele momento e aproveitava os intervalos para colocar seus “brinquedinhos” no ar. Geddy citou que “E, é claro, sempre ficava bem louco, porque eles voavam muito para o alto, ou perdiam o controle, coisas assim. Lembro que houve um avião que se perdeu completamente e acabou caindo e explodindo em cima da caminhonete de Ronnie Hawkins, fez um buraco enorme no teto… “…E isso continuou em Morin Heights, no Le Studio. Alex e Tony Geranios, técnico conhecido como Jack Secret, começaram a montar foguetes, e nós tínhamos esses lançamentos de foguetes, às vezes no jantar, às vezes no café da manhã. Lembro uma vez que lançaram um no quintal, e a coisa decolou do lado errado…” e “… escapou por centímetros (de explodir na Mercedes novinha em folha do Alex)…”

O conjunto, juntamente com o produtor Terry Brown, trabalhou de maneira intensa durante outubro e novembro de 1980, meses de muito frio e neve pesada. Vídeos promocionais de “Vital Signs”, “Tom Sawyer” e “Limelight” foram gravados no Le Studio, nos quais podemos ver o Rush tocando na sala de gravação com a neve caindo do lado de fora.  Eles continuaram a escrever músicas com um som mais amigável ao rádio, apresentando estruturas de músicas mais curtas e compactas em comparação com seus álbuns anteriores. Neil Peart citou, por ocasião de participações em entrevistas que promoviam a versão do 40º aniversário, que a diminuição das canções não significava mesmo reduzir os desafios de trazer o apuro técnico às canções. E mais do que isso, a banda nunca quis “forçar” algo intricado, como se eles fossem pretensiosos ou arrogantes, senhores de uma espécie de grandeza ou virtuosismo. Os trechos intricados surgiam, mesmo em canções mais diretas e menores em duração, pelo que o baterista chama de “boyish entusiasm” (entusiasmo juvenil).  No entanto, o fato de haver canções mais diretas resultou em mais veiculação em estações de rock clássico e, com “Limelight” e “Tom Sawyer” até mesmo algum crossover para o rádio Top 40. Isso não era nada desprezível, mas também não foi uma mudança de vida para nós, atestou Geddy Lee no seu livro My Effin’ Life.

Notícias da morte de John Lennon naquela época emanavam da cidade de Nova York, enquanto eles adentravam o Le Studio em outubro. Toda essa ideia de uma coleção de histórias é o que estávamos procurando. “Moving Pictures” é isso, descrevia Alex na época.  O título do álbum foi inspirado pela ideia de capturar momentos no tempo por meio da música, assim como um filme captura cenas. Geddy declarou que as músicas do disco eram como “pequenos filmes que se moviam”, e que o grupo estava numa fase de cunhar canções de maneira cinematográfica, com as letras de Peart criando filmes na cabeça dos ouvintes.

O disco foi o primeiro que Teery Brown produziu digitalmente. O Rush queria preservar a qualidade de suas gravações o máximo possível, reduzindo assim os danos potenciais à fita devido à reprodução frequente.  O álbum foi concluído atrasado devido a falhas de equipamento.  Segundo Geddy Lee, em entrevista à rádio Rick Ringer’s radio show on CHUM-FM in Toronto, no dia 11 de fevereiro de 1981, na première do álbum,”…  We lost about a week and a half due to problems, but again they were just…those were the kind of problems that it took…you know, the studio had never been 48 track before, we’ve never used 48 track before, we’d never gone digital before so they were just familiarisation really more than anything else…” (perdemos cerca de uma semana e meia devido a problemas, mas novamente eles eram apenas… esses eram o tipo de problema que levou… você sabe, o estúdio nunca tinha 48 pistas antes, nunca tínhamos usado 48 pistas antes, nunca tínhamos ido para o digital antes, então eles eram apenas uma familiarização mais do que qualquer outra coisa).  Na época, quando se usavam 48 canais de gravação, era preciso alinhar as mesas de som para fazer isso. Era uma tecnologia relativamente nova e bem imprevisível. Na hora da mixagem, Paul Northfield disse que “…Na época, usávamos fitas Ampex. No processo de mixagem, começaram a perder óxido. Então, cada vez que a fita passava pelos cabeçotes do gravador, no multitracker, tínhamos que limpá-los, porque precisávamos raspar o óxido deles. E essa é uma situação assustadora porque, quanto mais se tocava a fita, mais ela se deteriorava. Felizmente, isso aconteceu com poucos rolos e demos um jeito de concluir o processo…”

O álbum foi tocado na íntegra no programa, um dia antes de seu lançamento.  Lee também guardava para si o que seriam sérias dúvidas sobre o que eles tinham criado. “Levamos muito tempo para fazer o disco”, ele disse. “Quando saímos do estúdio, já era inverno rigoroso. Eu tive que dirigir para casa em meio a uma tempestade de neve horrível. Então, sem dormir, peguei um voo para o Caribe para passar férias com minha esposa. E quando ouvi o disco lá, fiquei tão esgotado que soou tudo errado.”

O disco conseguiu seu destaque no cenário devido ao single principal, “Tom Sawyer”, que é provavelmente a música mais conhecida da banda, com “Limelight” recebendo também muitas críticas satisfatórias entre ouvintes de rádio e fãs.  As letras de Peart mostravam que o estilo menos fantasioso e adepto de palavras mais concisas e diretas, até duras, tinha permanecido desde “Permanent Waves”. O baterista notoriamente sofria com a postura da fama, não só com a repercussão do grupo pela imprensa, mas também a idolatria dos fãs lhe causava desconforto, afinal se considerava e aos seus parceiros de jornada “merely players”.  A exceção neste lado é “Red Bachetta”, também composta nos primeiros momentos, cuja letra trazia sob forma de poesia a aventura a bordo de um carro. Para completar o lado A o grupo tinha a instrumental “YYZ”, desenvolvida inicialmente entre Lee e Peart.

“The Camera Eye” abre o lado B e foi a primeira música a ser composta. Essa música também continha um alto uso de sintetizadores, deixando vestígios do caminho por onde a banda seguiria. É também a última música da carreira da banda com mais de dez minutos, para transmitir impressões sobre Nova Iorque e Londres, menos mística, muito mais urbana. Outra música que abusa dos teclados é “Witch Hunt”, uma das músicas mais sombrias já escritas pelo trio, baseada na história das Bruxas de Salém. A revolução na sonoridade temática do power trio se consolidava. Reggae, música eletrônica e new wave influenciavam o pensamento dos músicos. “Vital Signs”, a canção que fecha o álbum, traz outro ponto de inflexão para onde os canadenses apontariam. Geddy adorava os Talking Heads. Peart, por sua vez, idolatrava bandas como Police e Ultravox, simpatizando com a nova e marcante atmosfera musical da época.  Há um consenso de que “Moving Pictures” é o disco em que Geddy começa a diminuir o uso dos seus agudos potentes.  As mudanças visuais também foram bastante perceptíveis nesse período. Alex e Neil cortaram seus cabelos, Neil também abandonou seu imponente bigode. A banda deixou de usar os quimonos e robes, o que os fazia, segundo Alex parecerem saindo de uma feira renascentista. O grupo optou por trazer um visual mais casual e iniciou um período usando roupas mais coloridas nos shows.  

Para as gravações Neil Peart manteve sua Tama Star Stained e os diversos elementos percussivos, porém trocou os timbales de metal por outros feitos de madeira. Ele também trocou seu tímpano e seu gongo por 2 gong bass drums, da Tama, abertos no fundo, sendo um deles disposto em um pedestal ao alto, bem ao fundo no lado direito e o outro ao lado do tradicional surdo (floor tom). Além das trocas, acrescentou um novo elemento percussivo, o Burma Bell. Neste recente vídeo, o canal Drumeo no YouTube buscou recriar o modelo que Neil usou à época.

Geddy Lee continuava sua jornada pelos teclados, usando os Oberheins, modelo 8, o novo OB-X (sequenciador) e OB-1, seu Mini-Moog, 2 sets de Moog Taurus Bass pedal fazendo interface com o OB-8, vários efeitos e o Roland Digital Sequencer. Para os baixos, além de ter os Rickenbackers 4001 e 4002 e o doubleneck (não usado nas gravações), “Moving Pictures” traz uma importante evolução para o som de Lee, pois o músico começa a se dedicar pouco a pouco a incorporar os Fenders em seu som principal. Alex Lifeson mantém suas Gibsons ES355 e 345, a doubleneck 1175, violões Ovation Classic e Adanis, e, assim como Geddy, pouco a pouco vai se dedicando a usar os instrumentos da Fender, aqui tendo uma Stratocaster à sua disposição. Outra novidade é uma guitarra Gibson no modelo SG. O guitarrista mantém os efeitos de Chorus da Roland, o Eletric Misstress Flanger, traz uma maior quantidade de delays de diversas marcas, um MXR distortion, o pedal de volume da Morley e tem todo esse equipamento montado numa pedalboard preparada para ele. Voltam 2 Marshalls modelos combo, mas ele mantém o uso dos Hiwatts, um deles com Leslie Cabinet.

Antes das gravações começarem, como em “Permanent Waves”, o grupo saiu para uma pequena turnê de aquecimento por 16 datas nos EUA, tendo o Saxon como banda de abertura. Os shows do Rush naquele mês de setembro trouxeram duas novidades para os fãs: as canções “Tom Sawyer” e “Limelight”, ambas realizadas de forma embrionária, com solos diferenciados das versões imortalizadas do álbum. “Moving Pictures” recebeu uma recepção positiva de críticos de música contemporânea e retrospectiva e se tornou um sucesso comercial instantâneo, alcançando o primeiro lugar no Canadá e o terceiro lugar nos Estados Unidos e no Reino Unido. Continua, disparado, sendo o álbum mais vendido do Rush nos Estados Unidos, com quase seis milhões de cópias vendidas até o presente momento. “Limelight”, “Tom Sawyer” e “Vital Signs” foram lançados como singles em 1981, e o instrumental “YYZ” foi indicado ao Grammy de Melhor Performance Instrumental de Rock, perdendo, até de forma irônica, para “Behind My Camel” do The Police, um instrumental extremamente repetitivo e hipnótico, que está musicalmente milhas aquém de “YYZ”.

Uma atenção especial daremos para a capa do álbum, uma nova marca na carreira da banda.  A icônica capa de “Moving Pictures” foi novamente desenhada por Hugh Syme, estima-se que a arte custou US$ 9.500 para ser produzida. A Anthem Records se recusou a cobrir a conta inteira, deixando a banda pagar o resto. O conceito, segundo Syme, era retratar algo em três sentidos diferentes, baseados no nome do álbum. 1) significaria carregadores carregando fotos; 2) fotos que são emocionalmente comoventes – na lateral, as pessoas são mostradas chorando. 3) uma equipe de filmagem fazendo uma imagem em movimento de toda a cena – está na contracapa este terceiro sentido.

O projeto foi fotografado do lado de fora do prédio da Assembleia Legislativa de Ontário, na III Wellesley Street West. Toronto é a capital da província, e essa é a porta da frente do governo – foi tirada no domingo, quando o prédio estava fechado. O grupo gostou da simetria da oponente fachada do edifício, pois lembrava um power trio, consistindo em três arcos e três pilares entre cada um dos arcos. Hugh foi premiado por essa capa, que lhe garantiu seu primeiro prêmio Juno pela arte. O Minuto Hm já esteve lá em 2019 e nesta atualização do post retornou conforme você pode ver abaixo:

As fotos que estão sendo “movidas” são:

-O logotipo “Starman” que é apresentado no álbum “2112”;

-Uma das pinturas de Dogs Playing Poker intitulada “A Friend in Need”;

Por fim, uma pintura que mostra Joana D’Arc sendo queimada na fogueira, que está mais à frente, em destaque.

A equipe de filmagem na contracapa realmente filmou a cena, da qual um único quadro foi usado para a capa. Isso foi revelado aos frequentadores do show do Rush vários anos depois, quando a imagem estática foi mostrada no projetor do palco, que de repente ganhou vida como uma sequência de filme. Mike Dixon, um dos carregadores da capa de “Moving Pictures” e do próximo álbum discorreu sobre as várias pessoas na capa de “Moving Pictures”, como podemos ver aqui. O primeiro carregador, Bobby King, visto mais à esquerda, era um membro da equipe de design de Syme tendo atuado junto a Hugh também em “A Farewell to Kings”, “Hemispheres”, and “2112”.  Dixon explicou que King não é apenas um dos carregadores, mas também aparece no logotipo do “Starman” e o homem de chapéu na capa do “Hemispheres”. O carregador segurando a pintura do “Starman” é Kelly Jay, vocalista da banda Crowbar de Toronto que fez um show com o Rush em 1973. A fotógrafa Deborah Samuel é a modelo para personagem de Joana D’Arc, seus parentes são a família à direita. Hugh explicou que não conseguiu encontrar uma pintura de Joana D’Arc, então criou a cena durante uma sessão de meia hora com Deborah envolta em panos e fluido de isqueiro aceso em pratos de torta diante dela. No entanto, isso entra em conflito com Jon Collins, nas informações fornecidas em sua biografia do Rush, “Chemistry”, que afirma: “Hugh pegou emprestado amigos, vizinhos e até os pais de seu cabeleireiro para posar para a capa”.

“Queria fazer algo simples e que desse um toque de Fellini na interpretação do título do disco”, diz Hugh Syme. “Precisava ser cinematográfico, pois minha ideia inicial era bem pobre e sem graça, como um quadro apenas sendo removido de uma parede branca”.  A ideia se desenvolveu com o auxílio dos nomes das canções do álbum, segundo Neil Peart: “Quando Hugh Syme estava desenvolvendo o grande número de trocadilhos da capa, ele queria que os carregadores que estão “movendo os quadros” tivessem alguns “quadros comoventes” movendo-se através das pessoas “comovidas” pelo “quadro”, “Então ele nos pediu que pensássemos em algumas ideias para estes quadros. A mulher – Joana D’Arc – está sendo queimada no poste (como em “Witch Hunt”), e os cachorros jogando cartas estão lá somente por ser uma ideia boba e engraçada – uma das figuras mais clichês que poderíamos pensar – um tipo diferente de “quadro móvel”. O vídeo abaixo, disponibilizado na versão do 40º aniversário de “Moving Pictures”, traz Hugh comentando o conceito do álbum.

Uma mudança significativa ocorreu pouco antes do lançamento de “Moving Pictures”. Apesar de ainda constar nos créditos, Vic Wilson deixou de ser um dos empresários da banda, deixando Ray Danniels como único responsável, dali em diante. A justificativa foi puramente pessoal, Vic optou por estar mais próximo de sua família, seu filho mais novo havia acabado de nascer, ele já tinha duas meninas em idade escolar.

Ficha técnica:

Geddy Lee – Baixo, teclados Oberheim polyphonic; OB-X; Mini-Moog; Moog Taurus Bass pedal e vocais
Alex Lifeson – Guitarras e violões de 6 e 12 cordas, MoogTaurus Bass Pedals.
Neil Peart – bateria, percussão

Sintetizadores em Witch Hunt: Hugh Syme  

Produzido por Rush e Terry Brown
Arranjos: Rush e Terry Brown

Gravado e mixado em estéreo no Le Studio, Morin Heights, Quebec, entre outubro e novembro de 1980.

Engenheiro de som: Paul Northfield, com assistência de Robbie Whelan e também por Albert, Huey, Dewey e Louie para a parte digital.

Masterizado digitalmente por: Peter Jensen

Direção artística, conceito da capa: Hugh Syme
Fotografia: Deborah Samuel
Empresariamento: Ray Danniels e Vic Wilson, SRO Productions, Toronto
Produção executiva: Moon Records
© 1981 Mercury Records © 1981 Anthem Entertainment

Notas adicionais do encarte:

Road Manager and Lighting Director: Howard Ungerleider
Concert Sound Engineer: Ian Grandy
Stage Manager: Michael Hirsh
Stage Right Technician, and Crew Cheif: Liam Birt
Stage Left Technician: Skip Gildersleeve
Centre Stage Technician: Larry Allen
Guitar and synthesizer Technician: Tony Geranios
Stage Monitor Mixer: Greg Connolly
Projectionist: Lee Tenner
Personal Shreve and Factotum: Kevin Flewitt

Concert Sound by National Sound
All-Stars: Tom Linthicum, Fuzzy Frazer, Dave Berman
Concert Lighting by See Factor International
Easy Co.: Nick Kotos, George Guido, Bob Kniffen, Bob Cross
Concert Rigging: the daring Bill Collins
Transportation expertly guided by Tom Whittaker, Billy Barlow, Kim Varney, Arthur MacLear, Pat Lines, Bill Fuquay, Mike and Linda Burnham

Fabulous Persons: at Le Studio: André, Yaël, Pam, Paul, Robbie, Roger, Harry, Claude & Gisele, André et Le Bouffe en Broche, Ted (Theo) McDonald, Irv Zuckerman & Associates (The Beords), Brain (Vings) Lski, George Vis, Ted Veneman, Max Lobstors, Saga & crew, 38 Special & crew (27-24), Drexel, Gerry, Griffin & Family, Terri at the Hawkins farm, Asteroids, volleyball (the Retardos & the Frantics 21-8!), the Greenie (you must be drinking!), Bill Ward, Loveman, Lovewoman & the Lovemachine, Scar & The Ignorant Wildfire Game, Top Secret, the Montreal Canadiens, Steven Shutt, Screvato, Robin & Phase One, Bill Elson, Cliff Burnstein, Jim Sotet, Sherry Levy, and the Oak Manorians.
Special British Supplement: Wild Horses; Jimmy & Sophie, Brian & Dee, Clive, Dirk (no relation), Mr. & Mrs. Robinson. Fin Costello, Bill Churchman, Alan Philips, Barry Murfet, Tex Yodell, Lofty & Stage Crew, Steve Tuck, Robbie Gilchrist
Dept. of Above-And-Beyond: Ray, Rhonda, L.B., Dear Olde Broon (a great mind thinks alike), Happy Birthday Ms. Broon (wrong again, eh, Hovis!)
Featuring Daisy as ‘Ski Bane’
Our continuing appreciation to the people and products of Tama, Avedis Zildjian, and Rickenbacker
Coolidge Dog Painting from the Archives of Brown & Bigelow, St. Paul, Minnesota.

Lado A

Tom Sawyer (4:34)

Red Barchetta (6:10)

YYZ (4:26)

Limelight (4:20)

Lado B

The Camera Eye  (Suite of two unnamed movements ) (11:00)

I. (6:00)

II. (5:00)

Witch Hunt (Part III of “Fear”)  (4:46)

Vital Signs (4:46)

Obs: Em abril de 2011, como um conjunto de dois discos do 30º aniversário, uma nova versão do álbum foi disponibilizada contendo a mixagem estéreo padrão no primeiro cd e no segundo, um disco DVD-Áudio ou Blu-ray, que traz o álbum em uma mixagem estéreo e som surround 5.1 com videoclipes dos três singles como bônus.

Em 15 de abril de 2022 houve o lançamento da versão do quadragésimo aniversário do álbum, trazendo um show inédito oficialmente, gravado no Maple Leaf Gardens em Toronto, no dia 25 de março de 1981.  Este conteúdo musical da versão de aniversário estará no apêndice C desta discografia, que será publicado em breve.  A versão 40º aniversário de “Moving Pictures” se destaca prioritariamente por trazer um show na íntegra ao vivo da super bem-sucedida turnê, além do exuberante material gráfico que a acompanha.

“Moving Pictures”, o oitavo álbum de estúdio da banda canadense de rock é o maior momento da carreira do grupo, sem qualquer sombra de dúvidas. O sucesso atingiu reconhecimento sem precedentes, e uma quase unanimidade entre os críticos. Alguns deles ainda criticavam o vocal de Lee, especialmente ao vivo, como John Griffin (the Montreal Gazette) ou Roman Cooney (the Calgary Herald). O material do álbum, no entanto, foi recebido com quase total aprovação.

O reconhecimento público se sustenta nas vendas e no sucesso da turnê, como veremos mais à frente. O álbum foi lançado em 12 de fevereiro de 1981 pela Anthem Records e em exatos dois meses e um dia foi certificado com disco de ouro nos Estados Unidos. Duas semanas à frente, em 27/04/81, recebeu a certificação de platina, com 1 milhão de vendas nos EUA. Dali pra frente não parou mais de vender, recebendo em 1984 a certificação de dupla platina, ao ser lançado em cd. Curiosamente, nas prensagens iniciais de 1984 estavam faltando a primeira batida de “Tom Sawyer” por engano, que foram corrigidas em lançamentos subsequentes. Em 1995 foi certificado com platina quádrupla. Em abril de 2021 o álbum atingiu as 5 milhões de cópias e continua vendendo até hoje, chegando aos oficialmente divulgados 5.710.000 exemplares vendidos no momento em que este post está sendo escrito. As vendagens de “Moving Pictures” fazem os números dos demais álbuns da carreira serem irrelevantes, quase. Mesmo “2112” até hoje vendeu algo próximo da metade de “Moving Pictures”. O espetacular “Permanent Waves”, terceiro álbum mais vendido da banda, chega neste momento a algo próximo a 1 milhão e 200 mil cópias.  Não há como comparar comercialmente “Moving Pictures” a qualquer álbum da banda.

Alex Lifeson recorda-se do alívio em finalmente terem conseguido a independência financeira: “…Eu tinha dois filhos na época, então era legal começar a ter algum tipo de segurança financeira. Comprei uma minivan, como segundo carro. Não saí por aí comprando Ferraris. Eu quitei minha hipoteca. A casa ficou sem mobília por dois anos, havia um sofá na sala, uma mesa de cozinha e duas camas, além de uma TV preto e branco de 12 polegadas. E, juro, era só isso mesmo. Duas hipotecas, e eu preocupado porque estaríamos enrascados caso alguma coisa acontecesse. Estávamos bastante endividados naquele período, fazendo o maior número de shows possível. Porque estávamos perdendo dinheiro todas as noites e sendo financiados pelos empresários. Simplesmente não fazíamos nada. Dávamos uma volta no parque e brincávamos com as crianças – era o que a gente fazia. E estava tudo bem, eu estava perfeitamente feliz, era o modo como vivíamos. Não tínhamos dinheiro além do nosso salário, que era bem modesto na época. Mas, felizmente, tudo deu certo.” No final das contas, ele também conseguiu ajudar os pais. “Eu não gosto muito de falar sobre isso, mas é algo que se sente, certamente com os pais, você tenta retribuir de alguma forma. Meus pais são do Leste Europeu, saídos da guerra, sempre foram muito focados em alimentar os filhos e lhes dar um bom lar. O dinheiro sempre era um problema. Depois disso, o dinheiro nunca mais foi uma questão. Retribuir é uma coisa maravilhosa, seja com algo grandioso ou pequeno. É muito gratificante.” – Trecho retirado do livro de Martin Popoff, Limelight Rush in the 80’s (Rush através das décadas 80 – Limelight).

O álbum também atingiu o terceiro lugar na parada Billboard, dos EUA e o terceiro lugar na Inglaterra. No Canadá, chegou ao primeiro lugar nos charts.  Neste momento é certificado com platina quádrupla em sua terra natal (400.000 cópias) e disco de ouro na Inglaterra (100 mil exemplares vendidos). Alguns reconhecimentos mais recentes colocam o álbum como o melhor dos anos 80, à frente do Depeche Mode em “Black Celebration”, de 1986, em votação no Facebook. Durante a turnê Time Machine, entre 2010 e 2011, o álbum é homenageado pela banda ao ser tocado na íntegra e em sua ordem original, como veremos mais à frente na discografia da banda. 

O grupo aproveitou o tempo de interrupção nas atividades de estúdio, quando estavam mixando o álbum, para gravar três vídeo clips. Havia no Canadá uma lei do governo do que obrigava as rádios a tocarem certa porcentagem de conteúdo canadense. O Rush preenchia todos os requisitos, sendo o mais canadense que se pode ser, e até por isso também foi um dos maiores beneficiados em sua terra natal. “Limelight” foi o primeiro single lançado pela banda, ainda em fevereiro de 1981. Chegou ao quarto lugar na parada da Billboard Top Chart e em 55º lugar na U.S. Billboard Hot 100, mantendo-se até hoje como uma das músicas mais populares da carreira do conjunto. 

Em uma estratégia parecida com a que fizeram no álbum ”Hemispheres”, a banda resolveu lançar também um single diferente em outro país. Assim, “Vital Signs” foi lançada como single em março de 1981 na Inglaterra, atingindo repercussão moderada. A canção chegou ao 41º lugar nas paradas britânicas.

“Tom Sawyer” foi o terceiro single, lançado em maio de 1981. A canção alcançou a posição 24 no Canadá, a posição 44 na Billboard Hot 100 dos EUA e a posição oito na parada Billboard Top Tracks. A versão de estúdio de “Tom Sawyer”, apesar de sua popularidade, não foi lançada como singles em outros países, nem mesmo na Inglaterra, onde o conjunto tinha bastante popularidade. “Tom Sawyer” é uma das canções mais tocadas nas rádios de rock clássico nos Estados Unidos, a canção mais tocada até 1988 pelas estações de rádio do Canadá e em 2009 ficou em 19º lugar na lista da VH1 das 100 Maiores Canções de Hard Rock. Assim como “Limelight”, figura no Hall of Fame canadense como uma das 5 canções selecionadas da banda, em indução de 2010.

Há uma nova versão oficial em vídeo lançada pela banda, por ocasião dos 30 anos de aniversário. Trata-se de um daqueles momentos no qual o grupo zomba de si mesmo.

E por ocasião do lançamento da versão do 40º aniversário do álbum, o grupo disponibilizou um novo vídeo clip, desta vez para “YYZ”, com vários momentos que remetem à história do grupo.

1-“Tom Sawyer” 

O álbum abre com a faixa mais famosa na discografia da banda, “Tom Sawyer”. O título da canção é baseado no personagem infantil “Tom Sawyer”, protagonista de livros escritos por Mark Twain no final do século XIX. Mark é considerado o pai da literatura moderna americana.  Nos livros infantis “As Aventuras de Tom Sawyer” (1876), “As Viagens de Tom Sawyer” (1894) e “Tom Sawyer, Detective” (1896), de Twain (1835-1910), Tom  e seu amigo  Huckleberry Finn envolvem-se em aventuras, tendo como pano de fundo o sul dos EUA, às margens do Rio Mississipi.

A letra de “Tom Sawyer”, coescrita com Pye Dubois, do Max Webster, que inicialmente chamava a música de “Louis the Warrior” ou “Louis the Lawyer”, retrata um rebelde de rua cheio de orgulho e destemido, parcialmente inspirado pelo personagem de Mark Twain. Pye enviava páginas de rascunhos e Neil Peart os colocava numa ordem. Os títulos originais não agradaram a Peart, desta a forma mudou radicalmente da ideia original, atribuindo a autoria em uma parceria de 50% de colaboração de cada um.

A letra é bastante ambígua e pode levar cada apreciador a tirar suas próprias conclusões sobre os desafios do protagonista. Tom é, na canção, uma pessoa determinada e cheia de personalidade, aparentando uma arrogância que na verdade é sua forma mais reservada. Na letra, Peart e Dubois atualizam o “Tom Sawyer” do século XIX aos anos 80, mostrando que se necessário ele ultrapassa todos os obstáculos para sobreviver no dia-a-dia. Para Geddy Lee, a música trata de como “Tom Sawyer” lida com sua inocência e sua integridade.

Musicalmente, a linha vocal de Geddy traz uma das faixas que mais aproximam o Rush a um tipo de melodia quase falada ou “faux-rap”, como já pontuou Lee.  Foi a primeira gravação do Rush em que Lee usou seu Fender Jazz Bass 1972, que se tornaria o principal instrumento de estúdio de Lee a partir da gravação de “Counterparts”. Lee não ficou satisfeito com a sonoridade de seu Rickenbacker, pois desejava mais grave e potência para acompanhar as linhas mais graves desenvolvidas por Peart e pelo seu novo teclado Oberheim OB-X. A banda já tocava a aguda linha central nos teclados através de Lee nas passagens de som durante o início do ano. Essas ideias foram retomadas no período de pré-produção, quando Dubois e Neil esboçavam as letras.

A abertura da canção se dá com a ajuda do som do novo OB-X e este um ponto crucial para entender aquela sonoridade tão moderna que o Rush traz para o álbum, já no primeiro segundo. Dá para considerar que este som do OB-X é o que mais vem à cabeça quando pensamos no “Moving Pictures”. Eis um vídeo que explica melhor como foi feito os timbres dos sintetizadores de “Tom Sawyer”:

Não é só isso, é claro. Além dessa mistura que engloba o OB-X, o Mini Moog e o Moog Taurus Bass Pedal, Geddy já neste primeiro instante vem sendo acompanhado pela poderosa marcação de Peart. O baterista afirmava que as linhas iniciais de sua bateria eram os elementos mais importantes para a definição do estilo que a canção os levaria. Ainda assim, apesar de bastante pesada e marcada, Neil opta por dobrar a condução no seu hi-hat, tornando o trecho particularmente desafiador para execução.  Neil cita particularmente “Tom Sawyer” como a música em que menos alterou ou acrescentou algo no seu arranjo original de bateria, gravado em 1980. Isso se deu, como em pouquíssimas músicas na carreira, pelo fato de o baterista entender que as linhas de bateria entregues na gravação do álbum eram as definitivas. Nota-se que a qualidade sonora da gravação da bateria está bem superior a todas as gravações anteriores de estúdio da banda. Segue-se a entrada do vocal, ainda nos primeiros momentos da canção, uma melodia quase falada, outro fator que diferencia a música das demais. Alex só se junta ao grupo em 0:11. Em 0:36 o baixo se junta aos strings emulados no teclado de pedal. Em 0:46 vem o segundo trecho cantado de “Tom Sawyer”, com os acordes abertos de Alex. Em 1:10 entra o que podemos considerar que é o refrão. A música retorna para seu início, e em 1:32 Geddy traz uma outra marca poderosa da canção, o riff feito nos sintetizadores, em compasso 7/4. Alex inicialmente pontua com power-chords dedilhados e se junta no mesmo riff, em 1:52, assim como Geddy passa a fazer o riff no baixo para começar o solo da música. Alex cita que em “Tom Sawyer” eles trabalharam diferente dos demais solos do álbum. Alex queria que o solo tivesse mais ambiência em relação aos que vinha buscando com seus delays e a solução foi fazer o som da guitarra ecoar por alto-falantes distribuídos na sala e assim gravá-lo. Alex afirma que o solo é composto de vários takes sobrepostos, algo como 5 ou 6 tentativas. Em 2:31 é a hora de Neil usar e abusar das viradas de bateria em mais um dos momentos prediletos dos air-drummers ao redor do mundo. A música retoma as partes já desenvolvidas, mas com arranjos de bateira mais enfáticos, para trazer novamente o trecho quase falado em 3:48. O final da canção traz novamente a seção em 7/4 com o riff tocado pela metade com os sintetizadores de Lee e os power-chords dedilhados de Alex, e termina em um fade-out.

“Tom Sawyer” é uma música absolutamente original, com quase nenhuma referência a outra canção dentro da discografia do grupo e e ousamos dizer que ela é diferente de tudo  que qualquer outra banda de rock já fez ou algum dia fará. A canção ultrapassou os limites de apreciação dentro do grupo de fãs da banda ou mesmo entre os apreciadores do gênero. A música chegou nos desenhos, em South Park, por exemplo, em uma animação especialmente feita para ser exibida nos telões dos shows do grupo, em 2008. Além disso, “Tom Sawyer” também é reconhecida especificamente pela população brasileira por ter sido usada como música de abertura para a série de espionagem MacGyver (chamada no Brasil de “Profissão Perigo”). Você pode ver os dois momentos abaixo:

2 -“Red Barchetta”  

A música foi inspirada no conto futurista “A Nice Morning Drive “, escrito por Richard Foster e publicado na edição de novembro de 1973 da revista Road & Track. A história descreve um futuro semelhante no qual regulamentações de segurança cada vez mais rigorosas forçaram os carros a evoluírem para enormes veículos de segurança modernos capazes de suportar um impacto de 50 milhas por hora (80 km/h) sem ferir o motorista. Consequentemente, os motoristas destes novos modelos tornaram-se menos conscientes da segurança e mais agressivos, e optaram por bater intencionalmente nos carros mais antigos, por “esporte”. No conto, o carro é um MG, mas Peart escolheu usar uma Ferrari 166 MM Barchetta na canção, já que é este o seu carro preferido.

A letra da música conta uma história ambientada em um futuro em que muitas classes de veículos foram proibidas por uma “Lei do Motor”. O tio do narrador manteve um desses veículos agora ilegais (o carro esportivo vermelho Barchetta) em perfeitas condições por cerca de 50 anos e o esconde em sua casa de campo secreta, que era uma fazenda antes da Lei do Motor ser promulgada. Todo domingo, o narrador comete um “crime semanal” de sair furtivamente para este local e dar uma volta no campo. Durante uma dessas viagens, ele encontra o “gleaming alloy air-car” – “o reluzente aeromóvel de liga metálica” – que surge sobre a montanha, sugerindo ser um veículo que pertence de fato às autoridades policiais. A sequência de letra culmina em uma fantástica perseguição de carro até que o narrador atravessa uma ponte de uma pista que é estreita demais para os perseguidores. A música termina com o narrador retornando em segurança para a fazenda de seu tio.

Barchetta, na indústria automotiva, o termo é usado para um carro de dois lugares sem nenhum tipo de teto. A pronúncia italiana correta não é seguida por Geddy que troca o som do K por T, como qualquer canadense ou norte-americano faria.  

Neil Peart fez várias tentativas de contato com Foster durante a gravação de “Moving Pictures”, mas a Road & Track não tinha um endereço atualizado e o Rush foi forçado a se contentar com uma breve nota “inspirado por” na folha de letras mencionando a história. Em julho de 2007, Foster e Peart finalmente fizeram contato um com o outro, mas trocando experiências acerca de motocicletas, que era a paixão de Neil à ocasião. É evidente que muitos apreciadores dos carros “vintage” se conectam tanto com o texto de Foster como com a letra da segunda faixa do “Moving Pictures”.

Musicalmente, a canção se inicia em um fade-in, aos poucos a suave guitarra de Alex começa a aparecer, com a criação de um tema baseado em harmônicos naturais. Não é a primeira vez que Alex constrói trechos marcantes de alguma canção utilizando este artifício. Em “Cygnus X-1 II: Hemispheres”, por exemplo, há o uso da ferramenta em aproximamadamente 2:00. “Red Barchetta”, no entanto, tem o que pode ser considerado o mais bonito uso dos harmônicos artificiais na carreira da banda. Abaixo trazemos uma explicação mais detalhada de como funciona o uso do artifício:

Harmônicos Naturais e “Red Barchetta”

Os harmônicos naturais são gerados ao tocar uma corda em determinados pontos sem pressioná-la no traste, trata-se de um contato bastante suave. Normalmente, estes pontos estão localizados em frações específicas do comprimento da corda, como metade, um terço ou um quarto, resultando em frequências que soam mais altas e puras em relação à nota padrão. Para produzir um harmônico natural, é preciso tocar a corda suavemente em um desses locais, normalmente com a mão esquerda (ou direita, se o músico for canhoto), enquanto a outra mão efetua a execução normal. Vejam abaixo: 

Voltando a canção, em 0:19 Geddy faz um pequeno e lindo solo de baixo. O dedilhado principal, no qual Geddy canta as estrofes bastante melodiosas, começa em 0:32. Em 0:59 Neil desfila uma série perfeita de viradas, ao invés de efetuar qualquer marcação. Em 1:11 a música muda de clima, buscando descrever as sensações de um passeio de carro. O protagonista revela que seu tio tem um belo automóvel preservado no celeiro.  Voltam os harmônicos e o dedilhado principal em 1:57, descrevendo o automóvel.  Em 2:27 Alex usa a alavanca de sua Stratocaster, simulando a aceleração do veículo. O que se segue é um riff que Geddy descreve como uma passagem emocionante que mais se aproxima da sensação de acelerar, sem obstáculos, por uma estrada vazia (quando o protagonista “comete seu crime semanal”, 2:28-2:58). Vamos interromper a descrição da canção para mostrar novamente como o Rush influenciou importantes bandas do progressivo, neste caso novamente o Dream Theater , e ousamos dizer que até a introdução de “Pro dia Nascer Feliz”, do “Barão Vermelho 2” de 1983, tem coincidentemente essa mesma pegada. Veja a semelhança entres os trechos abaixo.

Após mais uma parte cantada, na próxima seção de “Red Barchetta” vem o ótimo solo cheio de flanger de Alex, a partir de 3:21, com complicações métricas e uma linda virada de bateria, utilizando os tons mais agudos, em 3:42. Em 3:54 novamente estamos ouvindo o dedilhado, desta vez com distortion, bem permeado pelo baixo de Lee, trazendo a presença do que parece ser a polícia no horizonte. O trecho que nos remete ao “crime semanal” retorna ao arranjo, desta vez para descrever a perseguição entre os veículos. Perto dos 5 minutos, a música entrega novamente incríveis viradas de bateria, para retornar ao trecho pontuado pelos harmônicos naturais na guitarra e um lindo solo de baixo seguindo para um fade-out. A conclusão do tema, musicalmente, é suave, reforçando o conceito de final feliz. “Red Barchetta” é mais uma na carreira do Rush que não tem propriamente um refrão, segundo Geddy Lee. O baixista diz que durante a composição das canções eles não tem esse cuidado de seguir algum formato e que justamente essa forma sem padrão acabou por se tornar uma marca nas músicas do conjunto.

Você pode ler o conto de Richard Foster neste link, ou se preferir acessando o Apêndice C1 desta discografia.

3 – YYZ

YYZ” é o código de identificação do aeroporto Internacional de Toronto Pearson, cidade natal do grupo.  Há um sistema VHF no aeroporto transmite o código identificador YYZ em código Morse. Neil diz que Lifeson chamou a atenção para isso e o ritmo ficou na cabeça do baterista, que pensou em usar isso como riff para iniciar a canção.  É assim que a música começa, em compasso 10/8, introduzido por Peart para depois juntarem-se Geddy no baixo e Moog Taurus Bass Pedal e Lifeson na guitarra. Neil Peart usou os crotales para fazer o ritmo do trecho inicial, que simula o código Morse.  O aeroporto é uma parte muito importante na carreira de um músico, e o de Toronto tem estreita relação com o Rush. Em 0:36 há uma impressionante convenção em perfeita sincronia do grupo, notas rápidas acompanhadas pela bateria de Peart, todos como um só.  O riff principal da canção, que é em um vigoroso compasso 4/4, se inicia em 0:44, tentando traduzir a agitação dos aeroportos, foi feito por Neil e Geddy, quando Alex não se encontrava nos ensaios. Geddy disse que Lifeson teve um pouco mais de dificuldade em aprender o riff, pois, como foi feito no baixo e usando a mão ao invés de uma palheta, ele se torna muito mais difícil de reproduzir na guitarra e é interessante o fato que Geddy dobrou os baixos em estéreo com chorus para que a frase soasse mais pungente. Segue-se em 1:13 outro trecho da canção, a melodia com ares da Pérsia desenvolvida por Lifeson, muito bem acompanhada por Geddy. Em 1:38 é a hora de Lifeson fazer a base, cada vez de em um formato rítmico diferente, para seus colegas de banda brilharem, ambos revezando-se em passagens incríveis no baixo e bateria, que são verdadeiros mini-solos.     

O grupo queria transmitir de forma instrumental aquela agitação do vai e vem de pessoas indo e voltando de viagens, e o solo de guitarra de Alex em 2:23 em modo frígio dominante com um clima arábico, transmite um certo exotismo de alguns particulares destinos. O ruído de colisão ouvido entre as pausas no solo de guitarra é o som de sinos de vento (windchimes) amarrados a uma folha de compensado de 2×4 batida contra um banquinho de madeira, repleto de reverb. O uso deste compensado 2×4 é descrito como instrumento percussivo por Peart (plywood) e só consta neste álbum específico. No próximo capítulo de álbum de inéditas, “Signals”, tentaremos trazer em detalhes os mais usados elementos percussivos de Neil, que pouco a pouco seriam substituídos pelos eletrônicos de sua bateria. Ao contrário da maioria das faixas, “YYZ” foi gravada separadamente por cada músico. A justificativa é que nesta faixa era importante que cada um se concentrasse apenas em suas partes.

O solo se aproxima do fim em 2:48, quando Peart and Geddy param e Lifeson traz uma linha incrível de ligados para efetuar seu fechamento, mas ainda há tempo para uma moderna passagem em tom menor nos teclados de Geddy antes do guitarrista de fato terminá-lo de forma bastante harmônica. É sem dúvida um dos dois melhores solos do álbum, rivalizando com o de “Limelight” na preferência da grande maioria dos apreciadores. Em 3:20, após uma parada, a música retoma o riff principal e o trecho subsequente, como no seu início. Em 4:14 há mais uma passagem super sincronizada entre Peart e Lee, sob um efeito de feedback da guitarra de Lifeson, que nos leva ao fim com o riff baseado no código Morse e um fechamento, pela primeira vez no álbum, sem qualquer fade-out.

4 – Limelight

“Limelight” é uma das músicas mais adoradas dos fãs da banda, está entre cinco músicas pelas quais o Rush foi indicado no Hall da Fama dos Compositores Canadenses em 2010, e apesar disso, tem o propósito de falar sobre o desconforto do baterista Neil Peart com o contato próximo justamente com os fãs e também com a indústria de entretenimento em geral.  A música funcionou para o baterista como um desabafo diante de tanta dificuldade que ele teve durante sua carreira no Rush em lidar com holofotes que não são os que estão no palco. O que sempre interessou o baterista era manter-se dedicado a ser apenas um músico (merely player). Quando se está na estrada, por exemplo, diariamente são duas horas que se passa no palco, e o resto do dia conduz em direção à apresentação ou se resume a uma desaceleração depois do show. E com certeza era o foco de sua vida. Essa é a questão abordada ali: é necessário deixar todo o resto de lado, pois a composição, a performance, o aprendizado musical, são esses os aspectos que realmente interessavam, o que era importante, a diferença entre se sentir bem e não se sentir bem. Neil dizia que “Se eu saio do palco sabendo que não toquei tão bem quanto sou capaz, me sinto mal. E não importa quantas milhares de pessoas me digam que foi bom – não foi. Por outro lado, quando deixo o palco sabendo que toquei bem ou o mais próximo disso possível, então fico muito satisfeito. E é um tipo de paz que nada consegue perturbar, negativa ou positivamente. Você simplesmente se sente bem quanto a isso e não precisa de ratificação externa ou aprovação externa.”

Há um contexto adicional na fala de Neil. Ele se sente desconfortável não apenas com a adulação, mas também com meros elogios. Quando se está na mídia, todo mundo quer ser seu amigo e ninguém vai arriscar ser impertinente. No caso da interação com os fãs, é em geral muito breve, envolve quase sempre um elogio rápido e talvez uma expressão de conexão. É daí que surge a incrível, genial, mas rígida frase: “I can’t pretend a stranger is a long-awaited friend”( Eu não posso fingir que um estranho é um longamente aguardado amigo).

Escrever “Limelight” confirmou Alex “…foi uma espécie de ponto de virada para Neil…”…“Acho que foi quando ele começou a ter dificuldades em estar na estrada, em viver sob os holofotes…”. Lembremos que “Limelight” foi feita no momento da carreira no qual a banda tinha reconhecimento amplo de público e crítica, lotando estádios, criando uma legião de fãs, mas também trazendo pessoas que buscavam estar onde havia publicidade para elas, ainda estas não tivessem qualquer conexão com a música do grupo. Neil estava escrevendo sobre sua própria estranheza crescente com a fama. Para o baterista e letrista, a fama não era uma bênção, mas uma maldição. …“Eu não queria ser famoso” – (For those who wish to seem, …living in the Limelight, the universal dream – Para aqueles que desejam parecer, vivendo no centro das atenções, o sonho universal) –  ele disse uma vez. “Eu queria ser bom! É uma coisa totalmente diferente!” – (Those who wish to be, with insufficient tact,cast in this unlikely role,Ill-equipped to act,must put aside the alienation,one must put up barriers to keep oneself intact – Aqueles que desejam ser, com tato insuficiente, lançados neste papel improvável, mal equipados para agir, devem deixar de lado a alienação, devem colocar barreiras para se manterem intactos).

Ele simplesmente queria ser o que era (wish to be), não o que a fama poderia lhe proporcionar em aparentar (wish to seem). A relação de idolatria dos fãs mais insistentes o incomodava: “Eles nos forçam a fazer check-in em hotéis com nomes falsos. Eles nos fazem ter segurança para manter as pessoas longe de nós.”   A fama, para o baterista, era algo constrangedor, ele não gostaria de ser considerado alguém arrogante por simplesmente querer manter sua privacidade….”ao mesmo tempo, fico envergonhado se estranhos se aproximam de mim na rua e acham que me conhecem. Fico envergonhado, tenso e desconfortável. Eles não me conhecem. Isso só me deixa na defensiva.”

A letra, uma das melhores da carreira do letrista, além de espetacular, contém duas referências a outros dois momentos do grupo. A linha “living in a fish-eye lens, caught in the camera eye” faz referência, obviamente, à ”The Camera Eye”, que no álbum é a música que sucede “Limelight”. Já a frase “all the world’s indeed a stage, and we are merely players” remete diretamente ao título do primeiro álbum ao vivo da banda, o “All the World’s a Stage”, tirada de As You Like It, trabalho de Shakespeare.

A canção é um dos grandes exemplos do uso dos acordes abertos por Lifeson. Inicia-se em um riff de guitarra, e o baixo e bateria entram aos 0:12 sob um complexo tempo rítmico em compasso 7/4. A primeira estrofe, já em compasso 6/4, segue-se, já trazendo aqui e ali os acordes abertos, em cima da letra incrível de Peart. Em cerca de 1:00 vem o refrão, e aqui percebe-se muito claramente as notas cheias de chorus de Lifeson soarem para preencher o espaço da canção. Em 1:35 retorna o trecho para a segunda estrofe, que nos leva para um novo refrão. A música é um dos exemplos de canção construída sob um formato mais tradicional. Em 2:37 vem o espetacular solo de Lifeson. Alex atestou que no palco é provável que o solo em “Limelight” seja o seu favorito para tocar, ele sente que tenha acertado perfeitamente na fluidez, algo que se tornou gratificante para o guitarrista. Ele usou um modelo Stratocaster equipada com uma alavanca de vibrato Floyd Rose.  Segundo Lifeson, o solo vem no momento da canção que ele precisa soar solitário e ao mesmo tempo elástico, esses foram os pensamentos que o guitarrista teve para criar o trecho, segundo ele, em 5 ou 6 takes que foram editados entre si. Os críticos especializados citam a influência de Allan Holdsworth no estilo do solo. Allan é conhecido por influenciar diversos músicos, entre eles Eddie Van Halen. E realmente o que se percebe ao fundo do solo é o baixo/bateria tentando não aparecer mais em um momento de brilhantismo de Alex, ainda que Geddy e Peart estejam arregaçando em seus instrumentos. O trecho é sublinhado também por sutis strings de teclado e o solo termina com uma nota aguda da guitarra sustentada por um delay “eterno” em fade-out, enquanto Alex retorna aos dedilhados do pré-refrão (veremos na sequência da discografia que ele executará isso perfeitamente ao vivo). De 3:05 até 3:29, após algumas belas viradas, Neil inverte a caixa com o bumbo, trazendo ainda mais complexidade ao que parece ser uma música simples. “Limelight” é um dos grandes exemplos de como soar acessível e ao mesmo tempo tão complexo. Segue-se o refrão, que é reforçado por algumas frases cantadas por Geddy. O final, a partir dos 4:00, é uma aula da excelência de Neil Peart, entregando um desafiador conjunto de viradas em sua Tama, encerrando o lado A de forma espetacular.

5 –The Camera Eye

“The Camera Eye” serve como um instantâneo de observação, suas letras lançando um olhar incisivo sobre o rápido movimento da urbanidade em grandes cidades. As frases trazem a diferenciação de experiências humanas dentro dos limites das paisagens urbanas, sob um ponto de vista pessoal e reflexivo. A música destaca as diferenças culturais entre as cidades de Nova York e Londres, com Nova York trazendo rostos sombrios, proibitivos e apressados e em Londres um olhar melancólico e desgastado, mas ao mesmo tempo orgulhoso. A canção é bastante cinematográfica, expressando o agito de Nova York na primeira parte e Londres na segunda. 

Neil Peart criou a letra inspirado no estilo de dois escritores:  Um é John Dos Passos, em particular sua “USA Trilogy”. Nesses livros, Dos Pasos usa um recurso literário que ele chama de “olho da câmera”. John Steinback, a segunda referência, é influência para a canção em especial na obra “The Grapes of Wrath” de 1939, que contrasta os aspectos de dois lugares distintos nos EUA, Oklahoma e Califórnia, durante a jornada do protagonista Tom Joad. Ambos os trabalhos influenciaram fortemente Neil a trazer seu próprio ponto de vista em “The Camera Eye”.  Peart era frequentemente visto com um livro na mão durante os intervalos dos shows nas intermináveis cidades por onde eles passavam. O baterista passou a ler em ritmo furioso para lidar com o tempo ocioso das turnês. Esse hobby foi substituído depois pelos passeios de motocicleta, como veremos em breve.  Ambas as obras trazem as experiências do ponto de vista mais no convívio de cidades descritas. A letra destaca o lado urbano de grandes metrópoles.   

A música se inicia nos primeiros 30 segundos, com sons de rua cinematográficos retirados de uma cena de Superman: The Movie (1979). Você pode conferir o trecho em 44:29 mim deste vídeo.

A última faixa na carreira do grupo a ter mais de 10 minutos abre o lado B de “Moving Pictures”, recheada das experimentações nos teclados por Geddy. “Estávamos procurando por climas”, acrescenta Lifeson.  Geddy havia adquirido um OB-X, cuja presença se faz sentir particularmente nesta canção. Essa foi a primeira vez que os teclados apareceram com maior ênfase. Assim, este início traz os teclados de Lee entregando o clima urbano e moderno para a canção, de forma lentamente progressiva.

Em cerca de 0:50 Neil começa a rufar sua caixa em ritmo marcial, acompanhado por poucas notas e harmônicos da guitarra de Lifeson, como em um despertar urbano, as pessoas se movimentando pouco a pouco nas grandes cidades.. Em 1:34 a banda se junta por inteiro, continuando o tema inicial da canção. Em 2:16, soam ao fundo os efeitos mais texturizados do teclado OB-X Oberheim, para seguirmos ao trecho seguinte da canção. É o próprio teclado que inicia o trecho seguinte, com viradas de bateria que dão lugar à marcação prioritária da canção, a partir de 2:43. Lifeson neste trecho traz o riff principal de sua guitarra, ainda com Lee nos sintetizadores. Pouco a pouco, Lee substitui o sintetizador pelo baixo acompanhado pelo Moog Taurus Bass Pedal. Em 3:20 o riff de Lifeson sobe uma oitava em sua guitarra, acrescentado do efeito Flanger. Em 3:30, novo riff, para Lee começar a cantar o primeiro trecho, em compassos compostos alternados de 6/4 e 5/4, que descreve Nova Iorque. Em 4:42 vem o trecho final cantado da primeira parte, com os chorus de Lifeson em dedilhados, apoiando os vocais. Em 5:50 Peart entrega várias ótimas viradas de bateria, para seguir para a segunda parte da canção, Londres. Em 6:46 a música para, retornam os sintetizadores e a marcação traz o riff principal de Lifeson novamente.

Peart descreve o trecho que, ao contrário do restante do álbum, foi editado, estando na canção em 7:17, 8:28, 8:53 e em 10:10: “Um bom exemplo do princípio da edição é o par de longas viradas que introduz cada seção de voz na segunda metade de “The Camera Eye”: “…Cada vez que fazíamos um take da música, eu fechava os olhos nessas seções, deixava solto e tocava, fui capaz de escolher as melhores viradas, as mais emocionantes para o take definitivo”. Segundo o baterista “… uma boa analogia entre tocar ao vivo e gravar no estúdio é a diferença entre conversar e escrever. Quando se está escrevendo, pode-se riscar as palavras imprecisas ou desnecessárias e substituí-las ou trocá-las até que se chegue à essência do que se queria dizer. Ainda são suas palavras. Apenas estão mais refinadas e retificadas dentro da forma ideal…”   

Em 7:29 Lee começa a traçar as letras urbanas de Londres. A canção segue o formato desenvolvido na sua primeira parte, mas em 8:46, após o trecho com o dedilhado com o efeito de chorus, vem um trecho instrumental. Ali se ouve uma espécie de “easter-egg” até hoje não explicado, aparentemente. Há no fundo, em 8:56 o que parece ser Geddy, arrotar e dizer “Oh gawd.” Uma corrente dos fãs do Rush acredita que esta é uma saudação em inglês, algo como “Olá, Mornin’ Gov’ner.”- (Olá, bom dia, governador). Outra possibilidade é que ele simplesmente pediu algum ajuste no som enquanto gravava seus vocais e o trecho, intencionalmente ou não, permaneceu na mixagem final. Em 9:16 o ótimo e rápido solo de guitarra com muito feeling é acompanhado pela massa sonora que produzido inicialmente pelo baixo e bateria, mas que aos poucos vai recebendo notas de teclado ao fundo.  Em 10:09 Lee retoma o trecho final cantado. Os últimos 30 segundos da música, aproximadamente, deixam os instrumentos soando, em um lento fade-out.

6 –Witch Hunt

Um filme em movimento cinematográfico, aliás mais um. A peça é composta por imagens cinematográficas de uma noite iluminada por tochas seguradas por multidões uivantes. Para preparar este cenário para “Witch Hunt”, uma história sobre medo, preconceito e justiça pelas próprias mãos, o grupo queria vozes de uma multidão enfurecida, assim colocaram alguns microfones do lado de fora e todos — equipe, banda, equipe do estúdio — se vestiram bem e se reuniram protestando e gritando, construindo tomada após tomada até conseguirmos o que precisávamos. É possível ouvir o resultado a partir de 0:25.  Durante a gravação, certas piadas internas (e comentários inapropriados) encontraram seu caminho durante a confusão de vozes. Realmente parece um bando de caipiras barulhentos, suados e empunhando tochas, mas, na realidade, era um bando de manobrista com cachecóis, congelando em uma noite canadense em novembro.

A letra da música critica a intolerância e se desenvolve a partir do conceito de que quando aqueles que supostamente sabem o que é melhor para nós assumem o protagonismo das ações coletivas, para nos salvar de nós mesmos, pode transformar o ambiente em um local que mostra como o medo alimenta a mentalidade de uma multidão, proporcionando a caça às bruxas.  A música parece incrivelmente relevante hoje, dado os quão intolerantes e raivosos somos hoje. E é a materialização do quadro de Joanna D’Arc sendo queimada na fogueira que aparece na capa do álbum. Curiosamente, ela foi gravada no dia em que John Lennon foi assassinado.

A faixa é a terceira parte da série Fear de quatro partes, inicialmente projetada para ser uma sequência de três faixas regressivas em três discos de estúdio subsequentes (sendo “The Weapon” de “Signals” a parte 2, e “The Enemy Within” de “Grace Under Pressure” a parte 1). A ideia para a trilogia foi sugerida para trazer aspectos que nos levam a agir pelo medo. A quarta parte foi criada em cerca de 20 anos à frente na discografia, no álbum “Vapor Trails”, que ainda será também resenhado aqui no Minuto HM. A parte narrativa da música, a descrição da reunião da multidão de linchadores, revela como o mal está sob a superfície das intenções impiedosas.

Ouvimos em fade-in um riff lento e bem pesado que parece invocar uma procissão de caçadores de bruxa sob sinos e tambores, ainda sob o fundo do que soava ser uma multidão em fúria, riff este que está oscilando entre agonizante e envolvente quando Hugh se junta à banda com o sintetizador. Em 1:06 o riff pesado principal introduz a primeira estrofe. A percussão é marcial. Esta percussão no segundo verso foi feita de forma bastante diferente, pois quando eles gravaram a faixa básica, Neil deixou essa seção bem livre para preenchimento, assim ele voltou para fazer overdubbs (dobras) separadamente. Foram usados ​​sons e perspectivas diferentes para criar o efeito dramático de coisas alternadamente muito distantes e muito próximas. Em 2:16 os teclados feitos por Hugh Syme se acrescentam as rapidíssimas viradas de Peart, fazendo a música decolar, de fato.  Em 2:58 retornam às estrofes, como um power trio, com pouco acréscimo de teclados, que voltam a seguir, para o suposto refrão. A partir de 4:14 os teclados assumem o protagonismo, com pouco espaço para as guitarras de Lifeson, não há solos de guitarra na música. Há, no entanto, algumas belas frases de baixo, além de Peart continuar acelerando e aumentando cada virada de bateria que tem à sua disposição. A música foi a única não tocada na turnê subsequente, mas de forma intencional o método de gravação foi o mesmo de faixas como “Tears”, “Madrigal” ou “Different Strings”, canções que não seguiram o padrão de reprodução ao vivo como foi gravado em estúdio. “Witch Hunt” não foi tocada ao vivo antes da Grace Under Pressure Tour (na ocasião a banda tocaria as três partes então existentes de “Fear” em sequência numérica), quando se utilizou das ferramentas eletrônicas da bateria de Neil e voltou durante a Snakes & Arrows Tour, com Neil tocando o cowbell no pé. A banda cita essa canção como a que mais sofreu inserções nas gravações. Isso se dá pelas escolhas técnicas que foram feitas, entre elas o uso de duas gravações de bateria em determinados trechos.

7 –Vital Signs

Na última faixa de “Moving Pictures”, o grupo aborda a complexidade da condição humana em um mundo em constante mudança. Ela é constituída em uma letra recheada de metáforas, que são calcadas numa linha de vocabulário que Neil Peart definiu como “Technospeak”. Trata-se de usar os jargões da linguagem dos eletrônicos e computadores, que em geral parece uma ironia em paralelo ao desafio de seres humanos viverem em sociedade. A letra começa descrevendo uma condição instável, que pode ser interpretada como a instabilidade emocional e mental que todos enfrentamos devido às mudanças ambientais e sociais. Além disso, a música enfatiza a importância de desviar-se de pensar estritamente nas regras, refletindo sobre a importância de adaptação, resiliência e a busca por um equilíbrio, em especial através das frases da necessidade de usar “um filtro suave” para “reverter sua polaridade”.

A canção é fortemente influenciada pelo reggae, pela música eletrônica progressiva (no uso de sequenciadores) e pela música do Police e os tempos pouco ortodoxos de riffs de guitarra produzidos por King Crimson, por exemplo. Ou seja, uma autêntica salada, um liquidificador de ideias trazidas por um grupo ainda jovem, ávido por experimentar.

A música foi composta no estúdio. Neil atesta que “…Nós deixamos de propósito uma canção sem composição, com a intenção de escrevê-la direto no estúdio, já que havíamos alcançado bons resultados fazendo isso anteriormente. Beneficiando-se da pressão e espontaneidade desse contexto…” “..Essas músicas em geral acabam nos levando para uma direção totalmente diferente, como aconteceu com “Vital Signs”…”…É um som de último minuto, e eu adoro essas músicas feitas de última hora…”. .

De certa forma, ela antecipa uma sequência de canções com bastante influência de reggae, nos próximos 2 ou 3 álbuns, ao menos. Em “Vital Signs”, o Oberheim OB-X é usado para criar um lick em sequenciador que Geddy às vezes repete no baixo.   A guitarra é usada para dar à canção uma pegada de reggae, novamente não há solo de Lifeson na canção, mas o guitarrista se preocupa em deixar seus acordes com variações rítmicas completamente descompassadas do ritmo principal, uma interpretação da construção percussiva de Neil no estilo de Stewart Copeland. Nas gravações Neil retirou as peles frontais dos bumbos e usou um microfone colado em seu peito para trazer uma nova dinâmica de ambiência. É possível ver o microfone no vídeo da canção.

Em 0:46 a caixa de Neil é o mais próximo que o baterista teria chegado da percussão eletrônica que ele viria a desenvolver em breve, não há bumbos ou pratos no trecho. O refrão entra em 1:15, com a bateria voltando ao padrão. O padrão eletrônico-acústico do kit se segue no restante da canção.  Em 3:08, um teclado ao fundo dá espaço para um belo solo de baixo e o trecho final cantado por Geddy. Peart “solta os bichos”, estraçalha na bateria, demonstrando como um reggae hard rock progressivo se pareceria. Geddy na verdade canta “evelate” em 4:10 em vez de “elevate”, algo cuja única explicação plausível até hoje é de que Geddy estava cansado, errou e a banda optou por manter este novo “easter-egg”.    Outro ponto incomum são os nomes da suposta divisão entre diversos trechos que a música recebeu, em alguns créditos. “Vital Signs” se divide em:

“+ Plus” (0:47)

“÷ Divided By” (0:29)

“= [Shape-Shifter]” (0:26)

“− Minus” (0:29)

“× Multiplied By” (0:31)

“= [Soft-Filter]” (2:02)

“Moving Pictures” se junta aos melhores trabalhos da banda. É considerado normalmente o ápice dos canadenses pela maioria dos conhecedores, outros o colocam no mínimo neste patamar mais alto, ainda que com outros trabalhos ao seu lado. O Lado A é, além de impecável, um desfile de clássicos. Um lado muito forte, com canções icônicas. “Tom Sawyer”, “Limelight” e “YYZ’ são hinos da banda. “Red Barchetta” não deixa a desejar para as demais. Salta aos ouvidos também a variedade entre as canções. O Lado B não deixa por menos, apesar de ser menos mainstream. Novamente há uma grande versatilidade nas composições, desde a mais trabalhada “The Camera Eye” ao reggae complexo disfarçado de simples que é “Vital Signs”. “Witch Hunt” complementa o álbum como a talentosa faixa mais obscura deste álbum que é uma nova obra-prima do Rush.

Os shows:

Assim como em “Permanent Waves”, a banda seguiu, ainda durante as gravações, para uma turnê de aquecimento, com a inclusão de “Tom Sawyer” e “Limelight” em versões ainda não definitivas no set-list. A estratégia para o álbum foi concentrarem-se em shows americanos. Assim, eles fizeram 15 shows em setembro de 1980 e um último no dia 01 de outubro, todos nos EUA.  O Saxon excursionava nos EUA promovendo o seu segundo álbum, “Wheels of Steel” e foram a banda de abertura, em um set com cerca de 9 músicas.

O set-list do Rush manteve boa parte das canções tocadas nos shows da turnê anterior, inclusive a dupla “Closer To The Heart”/“Beneath, Between & Behind” em sequência. As suítes de maior duração, coerentemente, foram reduzidas a alguns trechos, para poderem dar lugar às novas canções. Assim, tanto “2112” quanto “ Cygnus X-1 Book II: Hemispheres” foram criteriosamente condensadas em seus trechos principais.  As duas primeiras partes de “2112” abriam os shows, e apenas a primeira parte da faixa título do álbum de 1978 era tocada.

A turnê principal começou em Kalamazoo em 20 de fevereiro de 1981. As bandas de abertura eram o Max Webster, FM e o Goddo. Para os shows finais, em julho, o projeto solo de Joe Perry (Aerosmith) se encarregava de abrir as noites. Novamente a turnê principal se manteve em território norte-americano, exceto por 8 datas no Canadá. Foram 4 noites em Chicago, 3 em Detroit (no icônico Cobo Hall). Eles haviam tocado no Palladium no tour anterior, uma “venue” que cabia cerca de 1800 pessoas em Nova Iorque, desta vez fizeram um único show, mas no Madison Square Garden, para uma capacidade de 20 mil expectadores. No total, mais 79 shows, que tinham um custo aproximado de 40 mil dólares em produção, mas que deram um lucro de mais de 4 milhões para a banda. Cerca de 900 mil pessoas viram o Rush excursionar com “Moving Pictures”.

O set list dos shows principais mudou algumas músicas de ordem e separou “Closer To The Heart” de “Beneath, Between & Behind”. O solo de bateria de Peart foi trazido para o meio da execução de “YYZ”. Alex incluiu um trecho acústico diferente, antes de “The Trees”. Além de “YYZ”, “Red Barchetta”, ”Vital Signs” e “The Camera Eye” foram também incluídas, entre as músicas do novo álbum.  Assim, outra faixa retirada, infelizmente, foi “Jacob’s Ladder”.  De “Moving Pictures”, apenas ”Witch Hunt” não estava sendo tocada nos shows principais da turnê. O trecho final do show, com músicas mais antigas que se emendavam, também foi bem modificado de uma perna para a outra da turnê.

Geddy Lee atestou que …” a turnê parecia praticamente a mesma que a anterior; as multidões estavam saudáveis ​​e barulhentas, com shows adicionais sendo incluidos em algumas cidades, mas conforme a turnê progredia, as coisas estavam de fato mudando. Mais demandas estavam sendo feitas em nosso tempo, mais visitas a estações de rádio e mais solicitações de entrevistas impressas. Mais pessoas do tipo VIP (ou pessoas que pensavam que eram VIPs) que nunca antes admitiram que estavam interessadas em nós, mas agora estavam aparecendo em nossos shows para verificar a confusão. Até mesmo o pessoal da gerência estava vindo aos nossos shows!…”  

Eis um exemplo do set list principal:

Podemos considerar que “Moving Pictures” é o álbum que melhor traduz a banda, mas ao mesmo tempo é um álbum que mantém o padrão de constante evolução e transformação do som dos canadenses. E por que “Moving Pictures” foi tão significativo? É uma coisa difícil de se explicar. Uma combinação da hora certa, do lugar certo, da música certa, da instrumentação certa e da energia, do poder de um trio, da sofisticação, do equilíbrio certo entre novas tecnologias e a força bruta da banda. Foi uma abordagem mais refinada para as canções, a confirmação a partir de “Permanent Waves” de que era uma direção proveitosa para eles.  A banda nunca experimentou nada sequer próximo daquele nível de sucesso. Após o último show, no dia 5 de julho de 1981 em East Troy, a banda enfim começa a viabilizar o tão propalado duplo ao vivo que havia sido acertadamente postergado.  Se em “Permanent Waves” era bem plausível entender que o próximo passo seria um álbum ao vivo, agora, com o sucesso sem precedentes de “Moving Pictures”, isso era um caminho quase inevitável. O próximo capítulo desta discografia vai trazer este que é um dos melhores álbuns ao vivo de todos os tempos, é só aguardar.

Keep bloggin’

Abilio Abreu e Alexandre B-side



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3 respostas

  1. Parabéns, essas matérias estão incríveis. Comentando cada detalhe com muito conhecimento, dá pra sentir o amor que vcs tem pela banda. Nota 10!

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  2. Olá, Marcelo, tudo bem ? Espero que sim.

    Olha, eu só posso lhe agradecer pelas palavras e firmar aqui um compromisso de que vamos tentar esmiuçar o máximo que pudermos toda a discografia destes incríveis canadenses.

    Fique à vontade para comentar, discordar, acrescentar, o blog é um espaço democrático onde todos são muito bem-vindos!

    Keep Rushin’

    Alexandre B-side

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